quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Transbordamento - limite

A doença maltrata, atormenta, aterroriza por quem a olha bem de perto, por quem a vive, por quem é atingido. Ela cutuca nossas feridas mais profundas, àquelas que jamais desejaríamos olhar. Ainda que a gente se afunde em negação e raiva, ainda assim, sabemos que está lá e que dela não podemos fugir.

Nadamos num rio escuro e profundo. Apavorados e sozinhos ficamos desesperados, angustiados. Por não suportar estes sentimentos, transformamo-los em flechas apontadas para todos os lados. Atiramos sem direção como uma tentativa desesperada de fuga e negação. Mas a fuga não é possível. Ainda quando se tenta correr para morte, ainda assim não se pode fugir daquilo que a vida inteira tentamos evitar.

Fugir é uma tentativa falha que tentamos inúmeras vezes, mesmo com os contínuos fracassos e frustrações, mesmo enxergando que fugir só prolonga o caminho, que se torna ainda mais doloroso. Ainda assim desejamos fugir. Acumulando mais pesos, mais marcas e dores. Uma hora o rio escuro transborda, uma hora só existirá o rio escuro. Uma hora será só você e a escuridão da sua própria dor.

Quando a dor e as mentiras inventadas transbordam, o corpo clama e a alma protesta, transformando-se num grito desesperado. Nós somos humanos, e o corpo não agüenta, ele também padece. Quando o corpo padece, a alma adoece junto e vice-versa, porque os dois, diferente do que nos é ensinado a acreditar, jamais estão separados. Eles são um só. É uma separação cultural bem difícil de compreender.

Nosso corpo carece de leveza e ele te avisa e te suplica todos os dias, mas somos treinados para não escutá-lo, para ignorá-lo, para acreditamos que somos feitos de ferro e não humanos. Mas até mesmo o ferro corrói, enferruja. Somos treinados a pensar que nunca seremos nós a nadar no rio escuro e a percorrer pelas nossas próprias sombras. Tudo é o outro. Tudo só acontece com o outro. Até o culpado pelos nossos erros é o outro.

O isolamento e a negação podem te isolar permanente em águas escuras. Mas não culpe a teoria. Você escolheu permanecer e construir muros que separam você da vida. Que separam você de águas límpidas e transparentes. O nado é longo e cansativo, mas aumentar ou encurtar essa distância é questão de escolha. Temos capacidade de autonomia. Temos plena capacidade de escolhermos onde queremos ficar e estar. Não importa o que seja, ainda assim foi escolha sua.

Transbordar é ultrapassar um limite que devíamos sempre respeitar. É ultrapassar o limite do que podemos suportar. É chegar ao intolerável. A sua mente pode até te enganar com uma falsa tolerância, mas o seu corpo e sua alma, estes jamais te enganarão. Basta saber ouvi-los, compreendê-los em sua forma e jeito de ser, pois não existe regra, existe individualidade.

Existe você. Saiba enxergar-se antes que o seu rio escuro transborde.





[Anne Leal]

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