domingo, 27 de julho de 2014

O fingimento da vida - parte 2

Ser humano é um bicho esquisito, ele se adapta a viver na dor, a se encarcerar e se firmar nos sofrimentos da alma. Ele se encaixa no comodismo e até mesmo no sofrer. E disso vai se alimentando, rastejando, com medo do novo, com medo de encontrar o melhor para si. Com medo de se levantar e caminhar sem olhar para trás. Ele constrói as próprias travas, grades e cadeados e se torna prisioneiro de suas próprias neuroses.

Um caminhar de olhos vazios, atônito, com talvez uma mínima perspectiva de um milagre. Talvez. De que a vida milagrosamente se transforme na utopia tão sonhada. Dentro de si pode até existir um desejo que queima forte, mas não há força para o movimento, não há força para ser você mesmo. Só a inércia de não conseguir ter autonomia sobre o próprio corpo. Não há força para dar um empurrão na consciência da consciência. Por que você pode até saber, mas só saber não basta.

Vez ou outra você até se anima, deixa brotar um novo desejo, planeja objetivos e até um novo futuro, um novo rumo, uma nova condição, quem sabe. Mas é um desejo que passa tão rápido quanto anoitece e amanhece. O desejo se esvai, dissolve e desaparece como se nunca tivesse existido. Logo se arranja uma nova desculpa por abandoná-lo tão rápido. E assim a gente se sabota, permanecendo com os olhos e o coração fechado.

Desculpas, a gente inventa um monte delas. Tão veloz é a justificativa de desistir antes mesmo de tentar. Tão rápido são nossas defesas, agem como se fossemos morrer. O fingimento se alimenta de desculpas, logo se torna seu pilar, seu jeito torto de funcionar. Assim você constrói a si mesmo, com mentiras que você mesmo inventou. E ainda culpa os outros pelas mentiras inventadas.

Fugaz e passageira é a vida alimentada por desculpas, que cresce alimentada por um vazio que angustia. É como se elas ficassem à espera do momento mais próximo, pra serem ditas exaustivamente, até todos cobrirem os olhos, até você mesmo cobrir seus próprios olhos, fingir acreditar que esse é seu eu verdadeiro. Mas a marca fica no seu corpo e tão logo ele dá um jeito de te mostrar. No fundo ou até superficialmente você sabe quem seu eu verdadeiro é. Você tem medo e assim persiste no fingimento, por medo, um sentimento tão humano que temos pavor de sentir. E então controlamos nossas feições, nossos gestos, nossas palavras, para não demonstrá-lo.

Mas no fundo, sabemos que estamos apavorados.







[Anne L.]

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